Um dos ecossistemas presentes na Mata Atlântica encanta e guarda tesouros.
G1: Por Luciano Lima, Terra da Gente
30/06/2021 10h13 Atualizado há 2 meses
Apesar de sua importância, muçununga é um ecossistema presente na Mata Atlântica ainda pouco conhecido — Foto: Luciano Lima/TG
Você já ouviu falar da muçununga? Ela é um dos ecossistemas presentes na Mata Atlântica mas, apesar de sua importância, é pouco conhecida. O biólogo do Terra da Gente, Luciano Lima, traz o relato de um passeio por um trecho de muçununga e explica algumas características dela.
Histórias Naturais é a coluna semanal do biólogo Luciano Lima no Terra da Gente — Foto: Arte/TG
O dia ainda não havia clareado enquanto eu “navegava” de carro por um mar de floresta que emparedava os dois lados de uma estrada de chão nos arredores de Porto Seguro, no sul da Bahia. Após cerca de vinte minutos dirigindo em meio à mata, o clarear do dia foi abruptamente acentuado quando cheguei em uma enorme clareira. Como das outras vezes que já havia estado ali, encostei o carro e, assim que desci, meus pés tocaram o solo fofo de areia branca, muito diferente da terra batida da estrada que corta a floresta. Eu havia chegado à uma área de muçununga.
Diferente do que muito gente pensa, a Mata Atlântica não é formada por um tipo único de floresta, mas por um conjunto de diferentes ecossistemas (ou fitofisionomias -se você quiser falar como os botânicos-). A muçununga é um desses ecossistemas. Encontrada apenas em regiões de baixa altitude no litoral norte do Espírito Santo e sul da Bahia, são ilhas com vegetação mais rala que contrastam com o mar da florestas de tabuleiro (outro tipo de fitofisionomia) ao seu redor.
Balança-rabo-canela é uma das aves com ocorrência no ecossistema — Foto: Luciano Lima/TG
A ocorrência das muçunungas está associada à grandes manchas de solo arenoso e pobre em nutrientes, o que acaba dificultando o desenvolvimento das plantas. É uma situação parecida com a da restinga, um outro ecossistema mais “pop”, sobre o qual você talvez já tenha ouvido falar. As restingas também se desenvolvem sobre solos arenosos e são uma das fitofisionomias que compõem a Mata Atlântica, mas as aparências param por aí. Muçununga e restinga são ecossistemas distintos, diferindo, entre várias outras coisas, no fato que as restingas estão sempre à beira mar, enquanto as muçunungas ocorrem em meio à áreas de florestas de tabuleiro. A origem do nome muçununga é tupi, faz referência ao solo de areia úmido e fofo.
O objetivo da minha visita naquela manhã era o mesmo que nos últimos anos já tinha me trazido muitas vezes a esse mesmo lugar, estudar as aves da RPPN Estação Veracel. Logo que desci do carro e comecei a passarinhar as aves fizeram questão de me lembrar que eu estava em uma das áreas protegidas mais preservadas e importantes da Mata Atlântica. Um casal de papagaios chauá passou barulhento sobrevoando a minha cabeça. Meia dúzia de passos pra frente dois machos do indescritível anambé-de-asa-branca reluziam aproveitando os primeiros raios de sol nos galhos mais altos de um árvore seca. Que recepção de boas vindas!
Além da vida animal, a flora das muçunungas é rica e exuberante — Foto: Luciano Lima/TG
Mais pra frente a lista da passarada só foi aumentando, tangará-príncipe, cambada-de-chaves, fim-fim-grande, cabeça-encarnada e chorozinho-de-boné. Esse último, uma exclusividade do sul da Bahia que ocorre principalmente em áreas de muçununga. Outra espécie da lista de “procurados” de qualquer observador de aves que visita essa região e que observei algumas vezes naquela manhã foi o ameaçado beija-flor balança-rabo-canela. Falando em espécies ameaçadas, observei ainda dois bandos de tiriba-grande e um pequeno bando de apuim-de-cauda-amarela passou sobrevoando e vocalizando.
Mas não só de aves vive a muçununga… O solo arenoso é ótimo para registrar a presença de mamíferos através de pegadas. Só naquela manhã observei rastros de anta, onça-parda, veado-mateiro, cachorro-do-mato, cutia e de um pequeno gato-do-mato, que desconfio ser o gato-maracajá. Os répteis também estão presentes em grande quantidade. Enquanto caminhava pela trilha vez ou outra ouvia algo apressado se deslocando sobre a cobertura de folhas mortas dentro das moitas de vegetação.
Eram lagartos que sem querer eu perturbava em seu banho de sol na borda da trilha. Entre eles encontrei mais uma espécie ameaçada de extinção e outro tesouro da muçununga, o lagartinho Ameivula nativo. A espécie ocorre apenas no norte do Espírito Santo e sul da Bahia, onde habita áreas de muçununga e restinga. De coloração clara e com listras negras que vão da cabeça a cauda, ajudando a se camuflar entre galhos e folhas caídas no solo, a espécies não é das mais chamativas, mas quem disse que todo tesouro precisa brilhar?
Os répteis também estão presentes em grande quantidade na região; na foto, o lagartinho Ameivula nativo — Foto: Luciano Lima/TG
Além da vida animal, a flora das muçunungas é rica e exuberante. Dependendo de condições locais do solo a vegetação pode variar de áreas campestres e alagadas a florestas pouco densas. Bromélias e orquídeas ocorrem em maior abundância na muçununga que nas áreas de floresta ao redor. Aqui e acolá grandes moitas de liquens se espalham pelo chão. O verde das plantas contrastando com o branco da areia forma uma paisagem singular, dando a impressão de estarmos caminhando em um gigantesco jardim zen.
Mesmo em pleno inverno, nos trópicos baianos no final da manhã o calor “chega chegando” e silencia as aves. É hora de voltar pro hotel. Mas, como todas as vezes que visito a muçununga, fico sem saber se volto incompleto ou transbordando, pois não consigo entender se é um pedaço meu que fica na muçununga ou se carrego um pedaço dela dentro de mim. Não tem problema, a ordem dos fatores não altera o produto. Qual produto? Encantamento!
* Luciano Lima é biólogo e faz parte da equipe do Terra da Gente