Plataforma continental pode ter abrigado floresta na era do gelo
Modelos ecológicos e análises genéticas contrariam aplicação da teoria dos refúgios à Mata Atlântica e indicam expansão do bioma há 21 mil anos
A plataforma continental brasileira, área submersa ao longo da costa, pode ter abrigado uma extensa área de Mata Atlântica há cerca de 21 mil anos, período conhecido como Último Máximo Glacial. A ideia é do casal de biólogos Yuri Leite e Leonora Costa, professores da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), e contraria a visão aceita por muito tempo de que o frio teria forçado o encolhimento da Mata Atlântica e ilhado pequenas populações de plantas e animais em fragmentos isolados de floresta – os refúgios. “A plataforma continental aparece no Google Maps, mas ninguém pensa nela como parte do continente”, explica o pesquisador, que passou a enxergar essa área sempre que via o mapa. “Até na televisão, em noticiários.” A ideia se baseia no conhecimento de que naquela época o nível do mar era bem mais baixo, e por isso foi batizada de hipótese da Mata Atlântida, em referência ao continente que teria sido engolido pelo oceano, segundo relato de personagens de dois diálogos de Platão. Os resultados foram publicados na segunda-feira (11/1) no site da revista PNAS.
Leite diz que a inspiração surgiu por acaso, mas seria mais preciso dizer que foi um encontro de ideias e colaborações catalisado pelo Laboratório de Mastozoologia e Biogeografia, coordenado por ele e Leonora. Trabalhando com modelos ecológicos para inferir condições passadas, Carolina Loss, em estágio de pós-doutorado no laboratório, teve a ideia de considerar o contorno do continente na época glacial, quando o nível do mar baixou e a costa avançou centenas de quilômetros para leste, expondo 270 quilômetros quadrados da plataforma, o equivalente a três vezes o território de Portugal. Ao mesmo tempo, num projeto em parceria com a bióloga Renata Pardini, da Universidade de São Paulo, e outros colegas, o grupo buscava avaliar a resposta dos pequenos mamíferos à fragmentação da Mata Atlântica. Espera-se que essas situações de redução do hábitat disponível e de isolamento em trechos distantes causem redução populacional e a consequente perda de variedade genética. Mas não era isso que viam nos modelos demográficos analisados pela bióloga portuguesa Rita Rocha, também em pós-doutorado na Ufes: não havia uma assinatura genética de redução populacional, e todos os cenários eram rejeitados nos modelos computacionais.
“Juntei as duas coisas e decidi testar uma situação de expansão da Mata Atlântica”, conta Leite. O modelo acusou ser essa a explicação mais plausível para a diversidade genética detectada em vários trechos do DNA de cinco espécies de pequenos mamíferos típicos desse tipo de floresta. As análises indicaram que as espécies se deslocaram para o norte e em menores altitudes, onde a temperatura era mais alta, em concordância com o que outros estudos já tinham indicado. As surpresas foram ver que a área adequada para esses animais estava menos subdividida em fragmentos durante o Máximo Glacial do que hoje e no período anterior à glaciação, e que a distribuição dessas espécies avançava pela plataforma então exposta. Os resultados contrariam a teoria dos refúgios, que durante muito tempo (mesmo com idas e vindas) permaneceu a explicação principal para a formação da diversidade biológica nessas florestas brasileiras (ver Pesquisa FAPESP nº 208).
Não está descartada a ideia de que trechos isolados de floresta estavam em localizações que lhes permitiram resistir à glaciação e manter, como arcas de Noé, um acervo de animais e plantas que evoluíram separadamente e deram origem à diversidade que se vê hoje. Mas a história deve ter sido muito mais complexa do que isso. “O principal é a topografia como um todo”, explica Leite. As regiões mais a norte, onde os mamíferos incluídos no estudo permaneceram durante a glaciação, são menos acidentadas e, em parte por isso, teriam permitido uma distribuição mais contínua. O mesmo vale para a plataforma continental, com um relevo mais plano.
O novo olhar também permite uma nova interpretação para a divisão que muitos pesquisadores observaram na região do rio Doce, em termos da genética das populações de vários tipos de animais. “Desde o doutorado me debruço sobre o norte e o sul da Mata Atlântica, olhando os rios”, conta Leonora. “Fui percebendo que rio não é barreira na história mais profunda da Mata Atlântica.” Outras feições parecem ser mais importantes nessa região. Ao sul do rio Doce, a serra está muito próxima à costa, enquanto que ao norte está mais distante. A plataforma continental tem um estreitamento ao sul desse mesmo rio e mais ao norte, a partir do arquipélago de Abrolhos, se torna muito estreita. Todo esse relevo deverá fazer parte das análises daqui para a frente.
“O artigo joga lenha na fogueira e traz mais uma hipótese para ser testada”, afirma a bióloga Maria Tereza Thomé, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro, que não fez parte do estudo. A nova visão pode fazê-la olhar seus próprios resultados com outros olhos, já que em estudos com os sapos do grupo Rhinella crucifer ela encontrou resultados condizentes com a hipótese da Mata Atlântida: não detectou flutuações demográficas fortes. Na parte sul da floresta, ao contrário, infere que as populações tenham permanecido estáveis. Em artigo publicado em 2014 na Molecular Ecology, ela e colaboradores sugerem a necessidade de se identificar barreiras hoje invisíveis à movimentação dos animais. A proposta da plataforma continental se encaixa. “Para os meus bichos faz todo o sentido”, declara.
Maria Tereza ressalta a importância de ser um trabalho pensado e feito apenas por pesquisadores brasileiros, publicado em um periódico renomado apenas por ser uma boa ideia, e bem exposta. “Não fizeram análises com nomes impronunciáveis, com equipamentos que ninguém tem e dados supersônicos”, brinca. E prevê impacto. “Na nossa área sofremos com a falta de hipóteses; agora obrigatoriamente todos terão que incluir esta.”
Fonte: Pesquisa FAPESP