O Código Florestal e as cidades: o dilema das APPs urbanas

O Código Florestal, tanto nas suas versões passadas como na atual, é reconhecido como importante instrumento de proteção ambiental. Concebido para regular principalmente o uso e a ocupação do imenso território rural brasileiro, sua aplicação nas áreas urbanas tem se mostrado desafiadora frente à ocorrência de inúmeros conflitos e situações de insegurança jurídica. Neste contexto, a regulamentação das Áreas de Preservação Permanentes (APPs) nos espaços urbanos constitui uma questão que precisa ser discutida pelo poder público e pela sociedade.

O atual Código Florestal foi promulgado em 2012, após anos de embates técnicos e políticos que deixaram evidente uma polarização entre ruralistas e ambientalistas. De um lado, aqueles que defendiam o aumento da produção agrícola por meio da reformulação de um Código considerado por eles ultrapassado e extremamente preservacionista. Do outro, aqueles que se preocupavam com a conservação das nossas florestas e viam a reformulação do Código como um potencial indutor do desmatamento de novas áreas e “anistiador” daquelas suprimidas ilegalmente no passado.

Qualquer dicotomia, é bom ressaltar, pode resultar na perigosa simplificação de uma situação complexa e na negligência de um amplo espectro de cenários possíveis. Não seria diferente em se tratando de um Código que visa regulamentar o uso do solo em um país de proporções continentais, grande produtor e exportador de commodities e, ao mesmo tempo, detentor de uma das maiores biodiversidades do planeta. Com o desafio de promover a agropecuária em consonância com a conservação ambiental, o foco do processo legislativo recaiu sobre as áreas rurais e florestais, relegando as áreas urbanas a um segundo plano.

Os dois principais instrumentos de proteção ambiental do Código Florestal são as reservas legais e as APPs. As reservas legais se aplicam às propriedades e posses rurais, enquanto que desde a Lei 7.803 de 18/07/89 a delimitação das APPs também se aplica às áreas urbanas, definição mantida no Código de 2012. Se por um lado celebramos a permanência das áreas urbanas na delimitação das APPs, por outro nos deparamos com o desafio de aplicar uma norma pensada para áreas rurais a realidades urbanas distintas da que a motivou. Além disso, são muitas as leis e normas municipais urbanas voltadas ao uso e ocupação do solo que se sobrepõem à lei federal, gerando conflitos legais e resultando em insegurança jurídica.

As poucas menções do Código Florestal a espaços urbanos dizem respeito à regularização fundiária de interesse social em assentamentos inseridos em área urbana de ocupação consolidada e que ocupam APP, e de interesse específico dos assentamentos em APPs não identificadas como áreas de risco. Nesses casos, o Código Florestal remete parte dessa prerrogativa a outra lei, que dispõe sobre o Programa Minha Casa Minha Vida (Lei 11.977/09) e autoriza os municípios a admitir a regularização fundiária de interesse social em APPs urbanas consolidadas.

Porém, a lei não discute a continuidade de atividades urbanas em APPs consolidadas que não se enquadrem nas situações expostas anteriormente nem novas ocupações e usos naquelas ainda não consolidadas, valendo as delimitações estabelecidas pelo Código Florestal – o que tem contribuído para adicionar mais um fator de insegurança jurídica ao tema.

Como a questão das APPs urbanas não possui regulamentação específica e parte da regularização das suas ocupações é dada por outra lei, muitos órgãos licenciadores estaduais têm interpretado a questão de formas diferentes, dando margem a questionamentos jurídicos e técnicos. A CETESB, por exemplo, tem interpretado que córregos canalizados não têm mais função de APP.

Na tentativa de avançar no tema, algumas propostas legislativas foram apresentadas nos últimos anos a fim de dispor um tratamento específico às APPs urbanas. Ainda na vigência do antigo Código Florestal, havia importante discussão sobre o tema, incluindo o conflito – ao menos aparente – desta lei com o a Lei 6.766/79 (Lei de Parcelamento do Solo), a qual limita o direito de construir de modo menos restritivo em relação ao diploma ambiental. Também são muito discutidas as competências de ordenamento urbano, amplamente delegadas aos municípios pela Constituição e Estatuto da Cidade, abrangendo a definição do uso e ocupação de APPs. Atualmente, encontra-se em trâmite no Senado o Projeto de Lei 368/12 especificamente sobre APPs urbanas. No entanto, este PL também não objetiva regulamentar essa áreas, restringindo-se a determinar que tenham suas delimitações definidas pelos planos diretores e leis de uso do solo dos municípios, ouvidos os conselhos estaduais e municipais de meio ambiente.

Desse contexto, surgem algumas questões a se considerar antes de expandir a competência dos municípios para regulamentar as APPs urbanas ou flexibilizar seu uso e ocupação. Até que ponto as delimitações das APPs dadas pelo Código Florestal são aplicáveis às áreas urbanas? É desejável e viável estabelecer critérios para diferenciar os espaços passíveis de proteção, regularização e recuperação? Qual o limite para novas ocupações em APPs urbanas, ainda que para utilidade pública e interesse social? Há como ter um regulamento federal sobre APPs urbanas que direcione o disciplinamento municipal destas áreas? Se sim, o Código Florestal deve ser alterado ou é possível regulamentar as APPs urbanas por meio de outra lei já existente ou a ser elaborada?

Essas e outras questões precisam ser enfrentadas, em especial os limites e as possibilidades de uso das APPs no espaço urbano, levantando os conflitos socioambientais decorrentes e propondo um instrumento regulatório mais adequado e eficiente. Não é tarefa fácil, mas um diálogo racional, ponderado e colaborativo entre múltiplos atores dos setores público e privado e da sociedade civil deve ser iniciado o quanto antes. Para isso, o Centro de Pesquisa Jurídica Aplicada da FGV Direito SP está conduzindo o projeto de pesquisa “Subsídios para a regulamentação das APPs urbanas”.

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