Áreas de Preservação Permanentes Urbanas: o filho relegado do Código Florestal

Áreas de Preservação Permanentes Urbanas: o filho relegado do Código Florestal

Função das APPs em espaços urbanos e a regulamentação da ocupação e uso em áreas já consolidadas precisa ser discutida de maneira aprofundada
14/07/2014 – 17h43

No mês de maio o atual Código Florestal (Lei nº12.651/2012) completou dois anos desde sua promulgação. Os embates técnicos e políticos que antecederam sua aprovação ganharam grande repercussão na mídia e trouxeram à tona uma polarização entre ambientalistas e ruralistas. A consequente mobilização da opinião pública, inclusive, acompanhou essa divisão do debate e tomou seu partido. De um lado, aqueles que defendiam o aumento da produção agrícola por meio da reformulação de um Código considerado por eles ultrapassado e extremamente preservacionista. Do outro, aqueles que estavam preocupados com a conservação das nossas florestas e viam a reformulação do Código como um potencial indutor do desmatamento de novas áreas e ‘anistiador’ daquelas já suprimidas de forma ilegal no passado.

Qualquer dicotomia, é bom ressaltar, pode resultar na perigosa simplificação de uma situação bastante complexa e na negligência de um amplo espectro de cenários possíveis. Não seria diferente em se tratando de um Código que visa regulamentar o uso do solo em um país de proporções continentais como o Brasil, grande produtor e exportador de commodities e, ao mesmo tempo, detentor de uma das maiores biodiversidades do planeta. Com o desafio de promover a agropecuária em consonância com a conservação da nossa fauna e flora, alguns elementos centrais acabaram ficando em um segundo plano, quando não esquecidos por completo. Um exemplo disso é a pouca importância dada à aplicabilidade do Código Florestal em áreas urbanas.

Mas se estamos tratando de um código florestal, por que haveríamos de falar de espaços circunscritos por perímetros urbanos? Comecemos então por um dos instrumentos mais importantes do Código Florestal, aquele que trata das APPs (áreas de preservação permanente). Conforme o estabelecido na lei, são áreas naturais intocáveis, cobertas ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, dentre outros que assegurem também o bem-estar das populações humanas.

Nas áreas urbanas, a aplicação das normas do Código Florestal para as APPs é bastante limitada e se sobrepõe a leis e normas municipais voltadas ao uso e ocupação do solo. Naturalmente, inúmeros conflitos legais resultam em um quadro de insegurança jurídica.

As poucas menções feitas no Código Florestal para os espaços urbanos dizem respeito à regularização fundiária de interesse social em assentamentos inseridos em área urbana de ocupação consolidada e que ocupam APP, e de interesse específico dos assentamentos em APPs não identificadas como áreas de risco. Porém, a lei não discute a continuidade de atividades urbanas em APPs já consolidadas há tempo nem novas ocupações naquelas ainda não consolidadas.

Ainda em 2012, foi decretada medida provisória (MP 571) alterando partes do novo Código Florestal. Nela, ficava estabelecido que as APPs urbanas tivessem sua largura determinada pelos respectivos planos diretores e leis de uso do solo dos municípios, ouvidos os conselhos estaduais e municipais de meio ambiente. Meses depois, a Lei 12.727 vetou tal disposição, deixando o Código Florestal ainda mais omisso em relação ao uso e ocupação das APPs urbanas.

Atualmente, encontra-se em trâmite um Projeto de Lei do Senado para dispor especificamente das APPs urbanas. No entanto o PL, que poderia regulamentar essas áreas, restringe-se apenas a reincorporar ao Código Florestal o texto dado pela MP 571. Assim, se aprovado o PL, as APPs serão regulamentadas pelos municípios sem diretrizes norteadoras dadas por lei federal. Essa situação mostra-se ainda mais delicada se levarmos em conta o fato de que grande parte dos municípios brasileiros não possui planos diretores, tampouco conselhos de meio ambiente (segundo IBGE 2013, apenas 67,9% dos municípios brasileiros possui conselho de meio ambiente e 30,8% tem plano diretor). Soma-se ao despreparo legal e técnico das prefeituras, a grande pressão política que sofrem pela especulação imobiliária.

Dessa forma, é extremamente pertinente que seja dada continuidade a discussão de forma mais aprofundada sobre a função das APPs em espaços urbanos e como regulamentar a sua ocupação e uso em áreas já consolidadas. Desse contexto, surgem algumas questões que devem ser levadas em conta antes de simplesmente atribuir aos municípios a responsabilidade de regulamentar essas APPs. Vale a pena despender esforços (do poder público e privado) para proteger, regularizar e recuperar áreas que não possuem mais a função ambiental de APP? Há como ter um regulamento federal sobre APPs urbanas que direcione o disciplinamento municipal destas áreas (por exemplo, através do Plano Diretor)? Qual o limite para novas ocupações em APPs urbanas, ainda que para utilidade pública e interesse social? Note que, a título ilustrativo, observamos em boa parte das cidades brasileiras a construção de ruas e avenidas ao longo de cursos d’água, com sérias implicações ambientais.

Essas e outras questões precisam ser enfrentadas, incluindo os limites e as possibilidades de uso das APPs no espaço urbano, levantando os conflitos socioambientais decorrentes e propondo um instrumento regulatório mais adequado e eficiente. Não é tarefa fácil, mas um diálogo mais racional, ponderado e colaborativo entre múltiplos atores dos setores público e privado e da sociedade civil deve ser iniciado o quanto antes.

Fonte:http://ultimainstancia.